Conversão e solidariedade: Gestos concretos
Já no primeiro dia da Quaresma ouvimos do profeta Isaías a denúncia dos jejuns e penitências que não agradam a Deus, e o anúncio daqueles que, de fato, agradam a Deus (cf Is 58,1-12). Penitências e jejuns apenas exteriores, sem verdadeira conversão e mudança de vida, sem “obediência a Deus”, não agradam a Deus.
O profeta refere-se a algumas atitudes, que devem ser fruto da penitência: quebrar as cadeias (condenações) injustas, desligar as amarras do jugo (da escravidão), tornar livres os detidos (direitos e dignidade humana), romper todo tipo de sujeição (desprezo, violência), repartir o pão com os famintos, acolher os pobres e peregrinos, vestir quem está nu, prestar socorro ao necessitado (precisa explicar?), deixar de lado os hábitos maldosos... Tantas outras situações poderiam ser acrescentadas hoje!
A palavra do Profeta continua valendo. Jesus a confirmou no Evangelho, de diversos modos (cf Mt 25) e a Igreja recomenda as obras de misericórdia, como sinal de nossa conversão a Deus e da autenticidade de nossa fé. Fé verdadeira em Deus, vida honesta e justa, respeito e atitude misericordiosa para com o próximo são inseparáveis. A Quaresma nos convida a crescer na autenticidade de nossas práticas religiosas e a produzir frutos autênticos de conversão.
Chegando ao final do caminho quaresmal, a Igreja nos chama a fazermos especialmente dois gestos concretos de fraternidade e solidariedade cristã. No Domingo de Ramos, com o encerramento da Campanha da Fraternidade, somos convidados a participar generosamente da Coleta da Solidariedade, feita em todas as igrejas, em todas as celebrações. Esta deveria ser diversa das coletas que se fazem, normalmente, nas nossas celebrações. Desta vez, o gesto deve ser fruto e expressão da nossa penitência e conversão quaresmal. Se nos abstivemos de algo – bebida, comida, cigarro que seja -, isso não deveria reverter simplesmente em “economia pessoal”... De alguma forma, foi “oferta a Deus” e já não nos pertence: deve ser partilhado com os necessitados.
A Campanha da Fraternidade deste ano pede que sejamos fraternos com os doentes pobres, que dependem do SUS e de políticas públicas de saúde para serem bem atendidos; o fruto da coleta da solidariedade será usado para apoiar muitas iniciativas e projetos, que visam alcançar esse objetivo; o gesto também corresponde à obra de misericórdia – “cuidar dos doentes” -; e tem por trás a palavra de Jesus: “estive doente, e cuidastes de mim”...
O outro gesto de solidariedade cristã concreta nos é pedido na Sexta Feira Santa: é a coleta para os “Lugares Santos”, destinada a socorrer as necessidades dos cristãos e da própria Igreja nos lugares bíblicos, onde nossa fé teve origem, onde “outrora, muitas vezes e de muitos modos, Deus falou a nossos pais pelos profetas”, e onde, chegada a plenitude dos tempos, Deus “falou-nos por meio do Filho” (cf Hb 1,1-2). Nos lugares bíblicos, compreendida a Terra Santa, os cristãos e a Igreja passam por muitas dificuldades e, conforme alerta lançados recentemente pelos bispos católicos locais, há graves riscos até mesmo para a sobrevivência do Cristianismo em certos países.
Com o fruto da coleta “para os Lugares Santos” são apoiadas paróquias, conventos, escolas, obras sociais da Igreja nos “países bíblicos”, sobretudo Israel, Palestina, Líbano, Síria, Turquia, Iraque, Egito... Mas também o trabalho das dioceses, a formação do clero, a promoção do diálogo ecumênico e inter-religioso, o zelo pelos “lugares santos” e a acolhida dos peregrinos naqueles lugares. Na Exortação Apostólica Verbum Domini (2010) sobre a Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja, o Papa Bento XVI repetiu o que já dissera Paulo VI: a Terra Santa é como se fosse um “quinto Evangelho”, onde tantas recordações históricas, geográficas e culturais continuam a “gritar” a Boa Nova e a tornam mais facilmente compreensível (cf nº 89).
Faria muita falta, se lá os cristãos desaparecerem, por perseguição, discriminação, martírio ou emigração, sem terem recebido a solidariedade dos outros irmãos de fé, espalhados por todo o mundo! E isso está acontecendo em nossos dias; a presença cristã já era reduzida e ainda diminuiu drasticamente em vários países, nesses anos recentes. A consciência do valor da fé, que herdamos de quem a acolheu nos “lugares santos”, deve nos mover à solidariedade para com as testemunhas dessa mesma fé, que vivem hoje naqueles lugares.
Card. Odilo P. Scherer
Arcebispo de S.Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, de 27.03.2012
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